Tudo que move é sagrado e remove as montanhas com todo cuidado*

Waidd Francis de Oliveira – Psicanalista, Professor da FDCL e membro da ACLCL

A natureza do ser humano, por vezes, apenas considerada como a natureza do “homem” com relação à sua bondade ou maldade, sempre foi tema de análise e discussão ao longo da história. A indagação diante dessa natureza suscitou diversas  teorias e explicações. Segundo o filósofo iluminista Jean Jacques Rosseau, o homem nasce bom e a sociedade tem a capacidade de corrompê-lo. Desta forma, entenderíamos que o meio poderia influenciar ou não na formação da personalidade de uma pessoa.

Por sua vez, Tomaz  Hobbes, um defensor do contratualismo, alegava que  o homem seria o lobo do próprio homem.

Inicio com essas pontuações para refletirmos sobre duas questões que têm sido  notícia  nas últimas semanas. A primeira delas é o projeto de lei do marco temporal das terras indígenas, que já chegou ao Senado como PL 2.903/2023. Projeto que pretende restringir a demarcação de terras indígenas, quais sejam, aquelas já tradicionalmente ocupadas por esses povos em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Se aprovado, esse projeto restringirá  o direito ao reconhecimento da posse das terras indígenas, estendendo seus efeitos também às populações quilombolas, o que aliás, já está acontecendo.

Givânia Silva, uma das fundadoras da Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas (Conaq), defende que se partirmos desse princípio, estaremos desconsiderando todo o processo de expropriação, expulsão e desterritorialização sofridos pelos povos tradicionais brasileiros.

Relatório da Comissão Arns de Direitos Humanos classifica o marco temporal como arbitrário, restritivo e inconstitucional.

A Associação Brasileira de Antropologia – ABA, dentre outras, questionam o argumento de procedimentalização da ocupação das terras indígenas, pelo fato da incompatibilidade com o modo de vida e a forma de ocupação da terra de muitos deles, que não ocorrem de forma definitiva, como habitualmente nas cidades.

Cumpre relembrar que o Supremo Tribunal Federal – STF deverá retomar em breve o julgamento do recurso extraordinário de interesse dos Xokleng, em razão de disputa sobre a posse da terra que tradicionalmente ocupam, denominada “La Klãnõ”.

Outro ponto de reflexão foi o fato ocorrido no início do mês de junho em São Paulo e que ganhou espaço na mídia com a seguinte chamada: “Homem negro é amarrado pelos pés e mãos e carregado por policiais em São Paulo”. 

Os procedimentos que acontecem após fatos como esse já são conhecidos: mídia, pressão de parte da sociedade, ouvidoria, corregedoria, decisões da justiça.

Mas isso é o obvio.

George Orwell, em seu famoso livro “A revolução dos bichos”, publicado pela primeira vez em 1945, inaugura a frase “homem bom é homem morto”, frase tão difundida e ao mesmo tempo distorcida para os tempos atuais.

Diante dessas questões rememoro construções que nos levavam a torcer pelos soldados de uniforme azul que exterminavam os índios norte-americanos na tv.

Seja lá qual natureza pretendemos assumir daqui em diante, oxalá as gerações vindouras possam constatar e defender que há  espaço para todos, direitos para todos,  terra para todos, e consequentemente riqueza para todos.

E, se considerarmos   que todo poder emana do povo , até quando, como sociedade detentora desse poder e pagadora de impostos, insistiremos em repetir e permitir, e não re-elaborar essas condutas?

Trago aqui um pequeno trecho adaptado do poema “Homem comum”, de Ferreira Gullar, que nos parece um convite :  “A infância nos volta à boca, amarga, suja de lama e de fome, mas somos milhões de mulheres e homens comuns e podemos formar uma muralha com nossos corpos de sonhos e margaridas”.

*Amor de Índio – Beto Guedes.

Share this content:

Publicar comentário

Notícias